segunda-feira, 27 de julho de 2020

AMIZADE


Por que não mantemos as mesmas amizades desde a infância, desde o colégio, desde a faculdade? Por que permitimos que aquele grupo do bairro, da igreja e do trabalho se dispersasse? Por que os amigos se vão, ou nós nos afastamos deles? Eu não sei. O que eu sei, com base na minha limitada experiência, é que grupos de amigos repetidamente se desfazem, as relações pessoais se esgarçam e, com o passar do tempo, as reuniões vão ficando menores. Num dado momento a lista dos íntimos começa a caber nos dedos das mãos. Sei também que não há nada de errado nisso. A vida é impulsionada por uma força de mudança que não isenta as relações de amizade. Os amigos mudam como muda todo resto, Todos sentimos a mesma aflição. A ideia de envelhecer é assustadora. A solidão é um buraco escuro e frio. Mas a festa permanente é uma alternativa insustentável. Sempre chega o momento em que a música acaba, todo mundo vai embora e alguém fica sozinho na calçada. Conheço gente que tenta, ativamente, manter amizades antigas. Promovem festas, fazem encontros, se empenham em telefonar, saber, contar, encontrar. Acho louvável, acho bonito, mas suspeito que a vida tenha uma inércia que se opõe a essa resistência. Quando a enxurrada da mudança nos leva em direção contrária à vida do outro, não adianta amarrar uma corda. Uma hora o vínculo se rompe e as pessoas se afastam. Fica o carinho e uma enorme nostalgia.

segunda-feira, 10 de junho de 2019


Houve um tempo, quando criança, em que eu costumava me imaginar um homem feito. Teria 25 ou 30 anos, seria veterinário ou agrônomo, seria casado com uma mulher com cabelos de índia e olhos de jabuticaba e viveria, com ela e três filhos, numa casinha rural rodeada de colinas, com cerca de madeira e chaminé, como as crianças costumam desenhar. Nesse cenário idílico, que nunca se materializou, eu seria feliz, destemido e generoso, como os heróis dos filmes. Sobretudo, eu estaria pronto, teria me tornado um adulto perfeito – e os adultos, toda criança sabe, não têm medos ou dúvidas. Os anos se passaram e, a cada 12 meses, a criança que eu era se confronta com o adulto que eu sou. A conversa nem sempre é tranquila, mas é fundamental que ela aconteça. O cara que eu me tornei deve satisfações à criança que eu fui. Tem de lidar com os sonhos dela e com as ilusões que ela engendrava sobre o futuro. O homem tem de contar para o menino que as coisas não são como ele sonhava, que a gente não faz a vida exatamente como quer, mas que, nem por isso, deixamos de ser dignos e bons. É importante que a criança dentro de nós saiba, também, que nunca estamos realmente prontos, nunca crescemos inteiramente, e que as nossas dores – e essa é a pior parte da conversa – não somem quando ficamos adultos. Seguem conosco, mesmo não sendo parte de nós. São como espinhos na nossa carne, e é preciso arrancá-los. Existe, afinal, a esperança de viver sem eles no ano que vem, na semana que vem, amanhã. A moça com cabelos de índia e olhos de jabuticaba tomou outras formas ao longo do tempo. Foi loira, teve olhos castanhos, cabelos crespos. Mas, em cada mulher real, havia algo da Eva infantil, primordial, que eu procurava como se fosse uma resposta absoluta. Aí há outra complexidade que o menino não previra. Parece não haver uma mulher na nossa história, mas várias. Parece não haver uma única resposta, uma única possibilidade.