sexta-feira, 14 de novembro de 2014

AOS MESTRES QUE REPARTEM TESOUROS



Das coisas que a gente vive, assiste ou lê, lembra muito pouco. Quase nada, na verdade. De um livro de 300 páginas, uma mísera passagem. De um filme inteiro, uma cena. Assim funciona minha memória: nunca  sei o que ficará para o futuro, mesmo de eventos supostamente memoráveis. A gente fica lá, de olhos e ouvidos arregalados, tentando reter tudo, e descobre, cinco anos depois, que só se lembra do decote da moça que estava na cadeira ao lado. Ou nem isso.
Tive um ano com dois professores maravilhosos e de uma erudição impressionante recebi a noticia que um não estará no próximo ano, na vida, a gente nem sabe se está numa comédia ou numa tragédia. Os grandes eventos passam disfarçados de coisas banais e as pessoas de grande importância entram em cena sem que a música tema as anuncie. Nós fazemos escolhas decisivas, de forma instantânea, sem ter a menor ideia de como a historia vai acabar. Ou pelo menos em que direção deveria se encaminhar. Assim, de olhos bem fechados, cometemos erros enormes, que com o correr do tempo se revelam acertos essenciais. Podendo também ocorrer o contrário.
O certo é que não sabemos o que estamos escolhendo. É certeza, também, que não há certo ou errado absoluto. Existe apenas a vida em movimento. Ela nos carrega na direção indicada por nossas escolhas como barquinhos de papel na corredeira. Nessa viagem, em que o poder de controle é tão pequeno
Hoje em dia, lembro com carinho até de pessoas que me fizeram sofrer. Talvez seja assim com todo mundo. No momento da ruptura ou do abandono, quando o mundo parece desabar ao nosso redor, as escolhas que nos levaram àquela pessoa parecem desafortunadas. Melhor seria jamais ter conhecido. Bobagem. Algum tempo depois, sem que a gente perceba, o sentimento vai virando outra coisa. A percepção sobre aquele momento e sobre aquela pessoa vai se transformando. Os traumas ficam, mas a ventura e a desventura daquele afeto se incorporam à vida como elemento essencial. O julgamento perde o sentido. Aquilo foi um acerto ou foi um erro? Aquilo foi bom ou foi mau? Não interessa. Apenas foi, e isso é o mais importante.
Há uma tristeza em nós que sobrevive às maiores alegrias. Todo mundo sabe disso. o que sempre soubemos: que a sombra e a melancolia são partes inseparáveis de nós.

Ter isso claro ajuda a entender o que nos passa. Ajuda a compreender nossos humores estranhos. Ajuda a entender uma tarde sombria no auge do verão. Ajuda a aceitar uma noite em claro, o silêncio no meio da festa, a vontade irresistível de chorar ouvindo uma canção no rádio. Também somos assim.

Às vezes temos sonhos de abandono em momentos serenos da vida. Neles, a pessoa que a gente gosta e admira vai embora, nos vira as costas, torna-se repentina e irremediavelmente inacessível. A mim parece que a natureza nos dotou de alarmes. De quando em quando, um deles dispara para nos lembrar, realisticamente, que não há bem que sempre dure. Ao nosso redor, milhões de pessoas partilham as mesmas calçadas e os mesmos desejos por , companheirismo. Tem aí material suficiente para bilhões de relações humanas. Eles podem não ser tão perfeitos quanto nos filmes. Podem não durar tanto e nem ter tantas estrelas no céu. . Mas elas existem e isso faz toda a diferença.


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