Na China antiga, quando as coisas começavam a dar errado em
larga escala, concluíam que o governo perdera a graça do Céu. Era uma forma
peculiar e mística de democracia. Funcionava. Permitia a remoção de imperadores
desastrados ou azarados demais.
Outro dia, movido pela comoção do Natal, percebi que a
lógica chinesa tem um equivalente concreto em nossa intimidade, se aplicada ao
imperador dos nossos sentimentos: o amor. Sem a graça do amor, nossa vida
desmorona, mais ou menos como o império da China sem a graça do Céu. Não se
trata de uma conclusão romântica sem fundamento. Ela é baseada em sentimentos
concretos e fatos reais.
O amor, como o ar que se respira, é uma substância essencial
e invisível da existência. Está lá, um minuto após o outro, desde o instante em
que nascemos. Nos mantém vivos. Nos acostumamos a ele. Acreditamos que estará
lá quando chegar a noite, como esteve durante a manhã. Mas não é certo. O amor,
assim como o ar, pode faltar de um minuto para o outro. A simples ameaça de que
isso aconteça esvazia a vida, abre um abismo diante de nós, nos lança nos
braços da calamidade.
O Natal está chegando, como todo ano. Nas ruas das nossas
cidades, sem neve e sem frio – talvez sem água –, milhões andarão em busca de
presentes, tentarão capturar numa caixinha um gesto de carinho. Entre eles,
andarão como zumbis os que perderam a graça do amor. Eles farão compras, darão
bom dia, conversarão com os vizinhos e se sentarão para tomar café com os
colegas de trabalho. Haverá neles, porém, um buraquinho, como o furo
microscópico de um pneu ou de uma bola, que deixa o ar escapar e leva o alento
e a vida. É possível viver assim, com o barulhinho quase inaudível do ar
fugindo e da alegria escapando – mas é triste.
Neste Natal quero pedir de volta a graça do amor. Para todos
os que a perderam. Que ela volte como um raio de luz num prado escuro, subitamente.
Ou que vá chegando de mansinho, como um sono tranquilo. Que ela retorne pela
troca de palavras ou que volte pisando com os pés descalços, em silêncio. Não
faz diferença. O importante é que leve embora os dilemas insolúveis, que remova
o vazio do futuro, que ofereça, como um corpo ansioso e disponível, a dádiva da
paixão – aquela que resgata homens e mulheres do abismo da indiferença.
Que a graça do amor, ao retornar, devolva tudo o que lá
estava antes, sobretudo os sonhos. Eles, sobretudo. Que venha com ela também a
graça do Céu, aquela antiga dos chineses, porque dessa, aqui no Brasil, também
precisamos.
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