Na faculdade um
professor passou um documentário sobre a vida de Sergio Buarque De
Holanda que no trecho que quero comentar dizia que gostava muito de ler. Ou melhor, ele gostava muitíssimo de ler, e gostava mais ainda
de comprar livros, muitos dos quais ele manda vir do exterior. Comparado
com outros, o vício dele é tão benigno que pode ser considerado uma virtude. Mas
sua mulher não concordava com isso. Ela
achava, com alguma razão, que ele gastava demais com leitura. O assunto virou
motivo de brigas do casal. Para evitá-las, ele fez um trato com um amigo ele
entrega na casa como se estivesse emprestando ou deixa os livros na agência do Correio. O amigo os apanha lá e contrabandeia na bolsa
para dentro de casa, sem que a mulher dele
percebesse. A biblioteca dele é, aparentemente, a única do mundo que
crescia de forma vegetativa rss.
Visto do ponto de vista desta história singela, quase
cômica, o casamento revela-se uma instituição infernal.
Num momento, há uma mulher encantada com a cultura, a
inteligência e a falante erudição do namorado. O fato que ele leia
abundantemente, até exageradamente, reforça a impressão de singularidade do
sujeito, torna-o ainda mais interessante. Passam-se os anos, dividem-se a
renda, o patrimônio e as peças de roupa na máquina de lavar e, pronto, opera-se
o inverso de um milagre – o intelectual torna-se um perdulário, uma ameaça à renda
familiar, um irresponsável que se vê obrigado, em nome da paz doméstica, a
traficar literatura clandestina para dentro de casa, como se fosse maconha ou
cocaína.
Como chegamos a isso, senhoras e senhores?
Eu não faço a menor ideia, mas sei que acontece. Quando você
conhece uma pessoa atraente, você a quer como ela é. O salto lá em cima, o
decote lá embaixo e aquele jeitinho de falar a três milímetros de distância, o
seu nariz quase roçando o narizinho vermelho . Aí você se envolve com a criatura
e tudo vira um pesadelo. As roupas, a intimidade imediata com estranhos, o
hábito de beber e a insistência – a maldita insistência – de ficar na festa até
o fim, quando as coisas realmente acontecem. Mas você já não quer que aconteça
mais nada, certo?Tenho uma amiga que anda saindo com um rapaz já faz algumas
semanas, talvez mais de mês. Toda vez que eu telefono ela está com ele. Quando
conversa comigo, fala sobre ele. Saem toda hora, imagino que durmam juntos
vários dias por semana. Planejam viagens. Eu perguntei se
estavam namorando e a resposta veio límpida: NÃO! Minha amiga parece querer
evitar a maldição das palavras. Se disser que está namorando, talvez tudo mude,
para pior. Então ela apenas “sai” com ele, e assim continua vivendo da maneira
como gosta. Com ele. Eu não sei se acredito nessas coisas. Talvez eu seja
conservador, mas acho que a cultura humana tende ao compromisso. Nós mudamos o
nome dos relacionamentos e até abrimos mão deles, mas não conseguimos alterar
sua natureza profunda, que ainda é totalitária. Quem tem mais autoridade e mais
poder sobre nós do que a pessoa com quem nos relacionamos? Quem tem mais
capacidade de nos causar dor? Acho que minha amiga vai seguir namorando sem
usar o nome e que outras pessoas evitarão envolver-se, para preservar seu
desejo e a sua autonomia. Eu, além de sofrer de todas essas coisas, vou
continuar, inutilmente, tentando entender o que nos aflige.
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